O texto abaixo não foi escrito por mim. Mas o reproduzo na íntegra pois retrata exatamente o que o AC/DC fez com maestria, ao longo da carreira, e agora ao chamar ninguém mais que Axl Rose para substituir o lendário Brian Johnson.
Nesse mundo moderno, a gente virou um bicho muito desatento, distraído, maria-vai-com-as-outras. A moda é Twitter? Começa um Twitter. Facebook? Vamos lá. Instagram, Snapchat? Realidade virtual? Queremos novidade toda hora. Queremos moda nova toda hora. O seriado quente do ano passado? Já era. A banda que estreou com aquela música fantástica? Ih, já está na terceira música, ficou velha, tem coisa nova.
Isso interfere na nossa vida, interfere no nosso trabalho. Fazemos um monte de coisas, corremos atrás de um monte de coisas, prestamos atenção em um monte de coisas. Você vai ao supermercado e dá até vertigem, de tanto produto diferente, e sempre tem mais, mais, mais. Em uma loja virtual, é isso vezes mil.
Num mundo com abundância de distrações, o que mais falta? Foco. Clareza. Permanência. Na vida real, é fundamental fazer algumas coisas muito bem. Você pode ter mil amigos no Facebook, mas isso só faz mais importante amar muito algumas poucas pessoas especiais. Requer concentração e dedicação.
Como requer esforço ficar bom em qualquer coisa. Até coisas que muita gente acha estúpida. E mesmo que leve décadas para você realmente ficar bom. Como, por exemplo, o AC/DC.
Angus Young usa aquele shorts, toca daquele jeito e esperneia como um epiléptico desde 1973. E, incrível, desde aquela época os caras sabiam que leva um tempão para você chegar ao topo. A primeira faixa do primeiro álbum do AC/DC avisava: “It´s a Long Way To The Top if You Wanna Rock´n´roll”.
Você pode dizer que o AC/DC, como os Ramones ou o Motorhead, fazem sempre a mesma coisa. O AC/DC faz basicamente a mesma música, com as mesmas letras toscas, desde que eu tinha nove anos de idade. Sou fã desde os dezenove, 1985, quando vi os caras no Rock In Rio. Eu detestava heavy metal. Me rendi ali na hora. Até hoje, não vi show mais poderoso.
O AC/DC faz sempre a mesma coisa, mas ninguém faz essa coisa melhor que eles. Eles não se distraem com a novidade do momento. Nunca mudaram o show, as roupas, os arranjos. Não seguem modinha. Não facilitam para os serviços de streaming, gostam mesmo é de vender CD, e vendem, e de lotar shows, e lotam.
Uns anos atrás, vi uma entrevista com a banda na MTV americana. O apresentador perguntou, vocês acompanham as novidades do rock? Qual a última banda que vocês acharam bacana? Angus respondeu, “os Rolling Stones”.
É de chorar de legal. E é uma aula de como focar no que importa. Repetição leva à perfeição. E manter a fidelidade ao que te fez requer uma disciplina infernal. Mas compensa. Ainda faz sentido Angus Young, nascido em 1955, usar aquele uniforme de colegial enquanto se atira pelo palco? Estádios lotados no mundo inteiro respondem em coro: “Sim!”.
O AC/DC vem passando por uma temporada dura. Malcolm, irmão de Angus, e fundador da banda, teve que se aposentar por questões de saúde. Depois foi a vez de Phil Rudd, baterista, que teve problemas com a lei. Recentemente, um baque aparentemente insuperável: no meio da turnê Rock or Bust, o vocalista Brian Johnson saiu da banda, alertado por seu médico que corria risco iminente de perder a audição.
Pois o que fez o AC/DC? Foi pra casa? Mas de jeito nenhum. Há grana pra faturar, há contratos a serem cumpridos com promotores de shows planeta afora. Angus chamou um baterista antigo. Botou o sobrinho no lugar de Malcolm. E recrutou ninguém menos que Axl Rose para substituir Brian.
Jogada brilhante. Quem já viu o AC/DC dez vezes ganhou uma razão para ver de novo. Quem é fã do Guns N´Roses, idem. E é uma oportunidade única, porque sabe-se lá se no futuro Axl voltará a cantar com o AC/DC. Aliás, nem sabemos se a banda continua: o baixista Cliff Williams já anunciou que depois que a turnê acabar, também está fora.
Você conhece produtos como o AC/DC. São aqueles com que você conta, chova ou faça sol. Que não mudam. Que estão sempre lá quando você precisa. São relações longas, às vezes para toda a vida. Receitas perfeitas são perfeitas. Não há o que melhorar. Não tem duas maneiras de assar uma picanha perfeita.
Pensando agora como empresa. Não há meta mais difícil no mercado que criar um AC/DC, uma Coca-Cola, um leite condensado Moça, uma paçoquinha Amor, um creme Nivea, uma Harley-Davidson. Ou, para ficar na minha vizinhança, o x-salada do Burdog.
Ou, pensando bem, talvez haja algo mais difícil. Que é resistir à tentação de mudar o time que está ganhando. Porque, afinal, o tempo passa, as pessoas mudam, as equipes das empresas mudam, e profissionais naturalmente querem deixar suas marcas por onde passam. De vez em quando dá certo e o cara fica famoso pela esperteza. Na maioria gigantesca das vezes dá errado.
Para ficar em dois casos engraçados, lembro de quando um gênio lá decidiu que Arnold Schwarzenegger deveria fazer comédias para toda a família. E quando a Mercedes, sinônimo de carro de luxo, lançou o Classe A, minúsculo e popular, o contrário do que a marca significava.
Fazer sucesso é difícil. Fazer sucesso por muito tempo é quase impossível. Qual é o segredo da empresa mais valiosa do mundo? Ser como o AC/DC. A Apple faz a mesma coisa pelo menos desde o primeiro Mac que eu comprei, um LC II, em 1992: produtos eletrônicos super charmosos e amigáveis. Que qualquer um pode usar, e depois não quer trocar por outra marca. Os produtos da Apple mudam, o DNA permanece.
Na verdade, a Apple quase foi à falência quando abandonou sua identidade. Foi a volta de Steve Jobs à companhia, e um foco redobrado na identidade da marca, que criou a Apple que conhecemos hoje. Outro dia Tim Cook chamou para o palco Shigeru Miyamoto, o maior gênio dos videogames, criador do Mario, para anunciar os primeiros jogos Nintendo para o iPhone. Lembrei na hora de Angus convocando Axl. Cross-branding perfeito. Mas mantendo a identidade.
Inovação é importante? Nem sempre. Não no caso de marcas como o AC/DC. Tudo que não queremos é que elas inovem. São nossos portos-seguros. Podemos promovê-las usando as mais recentes novidades da tecnologia, as jogadas de marketing mais quentes? Podemos. Precisa ver se é necessário mesmo, ou só dinheiro jogado fora. Mas sempre lembrando da máxima de Tomaso di Lampedusa: “as coisas têm que mudar para que permaneçam exatamente como são.”
Ah, já ia esquecendo: a previsão é que o faturamento total da turnê Rock or Bust passe de 250 milhões de dólares! O AC/DC é assim: é TNT, é dinamite…